Festim Diabólico (Alfred Hitchcock) -1948




Lançado em 1948, o filme “Festim diabólico” (Rope), baseado em uma peça teatral de Patrick Hamilton, conta a história de Brandon (Jhon Dall) e Phillip (Farley Granger), que assassinam o amigo David (Dick Hogan), colocam seu corpo dentro de uma arca e convidam seu pai, Sr.Kentley (Cedric Hardwicke), sua namorada, Janet Walker (Joan Chandler), o amigo, Kenneth Lawrence (Douglas Dick) e o professor Rupet Cadell (James Stewart) que lecionou para eles no colégio, para uma festa, que tem como mesa de jantar a arca onde está escondido o corpo de David.
            O filme se inicia, com a câmera mostrando do alto da varanda de um apartamento, pessoas caminhando pela calçada, logo em seguida ouve-se um grito e a partir de então a câmera move-se para o lado de dentro, onde nos mostra Brandon e Phillip enforcando David com uma corda. Ao verem que David está morto, os dois colocam seu corpo dentro de uma arca e apressam-se para organizar os detalhes da festa que eles já haviam programado anteriormente. Durante esse período, Brandon, o mentor de toda a trama, resolve mudar o local onde seria servida a comida da festa. Ele desfaz a mesa de jantar e monta-a em cima da arca onde se encontrava o corpo de David. Nesse momento, ele, que via o assassinato cometido como uma obra de arte, faz o seguinte comentário ao ser indagado por Phillip a respeito do que estava fazendo:
            – Uma obra prima da nossa obra de arte.
            Nesse instante, Phillip, que se mostra um pouco receoso e arrependido do que fizeram durante todo o filme, afirma que Brandon estava indo longe demais e tenta impedi-lo de montar a mesa sobre a arca, mas logo desiste, pois acredita que assim pelo menos ninguém tentará abri-la.
A atitude de Phillip deixa claro que apesar de ter participado do assassinato, ele foi, em grande medida, manipulado por Brandon. Mas diante dessa afirmação, surge a pergunta: Como um indivíduo consegue manipular o outro, levando-o a cometer uma atrocidade?
Para tentar encontrar uma resposta, me remeterei primeiro a Buck-Morss, que aponta para o fato do fascismo ter tomado as proporções que tomou, em grande parte devido à estetização da política que eles realizavam, (grandes desfiles, grandes discursos, tudo planejado nos mínimos detalhes), pois segundo ela, “a estética permite uma anestesia da recepção, uma visão da cena com um prazer desinteressado, ainda que essa cena seja a preparação de toda uma sociedade, por meio de um ritual, para o sacrifício sem questionamento e, em ultima instância a destruição, o assassinato e a morte.”
            Dessa forma, se levarmos em consideração toda a preocupação que Brandon mostrou em executar o crime perfeito desde o inicio do filme, atentando-se aos mínimos detalhes de localização de objetos, de pessoas que seriam convidadas para a festa, além de diversos outros pormenores relacionados aos diálogos que ele estabeleceu durante a trama, podemos dizer que Brandon a exemplo do fascismo, também realizou uma estetização, não da política, mas do assassinato, o que fatalmente pode ter contribuído para que ele conseguisse manipular Phillip.Se aceitarmos tal hipótese, não seria exagero comparar Phillip ao povo alemão e, Brandon a Adolf Hitler, que sem dúvida alguma foi o arquétipo daquele que Adorno chamou de assassino de gabinete, ou seja, líderes que ajudam a velha sociedade, já cega por sua confiança em autoridades, a atravessar a rua pela faixa de pedestres da intolerância, até a calçada de barbaridades que se encontra do outro lado.
            A principal diferença de Brandon e os chamados assassinos de gabinete, talvez se encontre no fato dele ter efetivamente ter participado do assassinato, imobilizando David enquanto este era enforcado por Phillip, no mais o seu caráter manipulador e frio ilustra perfeitamente o tipo apontado por Adorno.
Seguindo a análise do filme, destaco também a cena que nos mostra o professor Rupert de costas prestando atenção no diálogo dos outros convidados, tendo ao seu lado a arca que após servir como mesa de jantar estava sendo agora limpa pela empregada dos assassinos. Enquanto o diálogo transcorre, o enquadramento nos mostra a empregada realizando seu trabalho de limpeza, retirando os talheres, os castiçais e o pano que cobria a arca, de modo que quando retirava cada um dos objetos, o plano mostrava sem se modificar a sua caminhada até a cozinha onde os objetos eram deixados. Terminada a limpeza, a cena passa a mostrar a empregada trazendo em suas mãos alguns livros que foram retirados da arca e que agora deviam retornar ao seu lugar. Prestes a abrir a arca, onde se defrontaria com o cadáver de David, a empregada que aparentava certa dificuldade para carregar todos os livros, ganha a ajuda de Rupert, que chega a abrir a tampa por alguns centímetros, até ser detido por Brandon, que volta a tampa ao lugar e diz que os livros poderiam ser guardados em outro momento.
A tensão criada por Hitchcock nessa sequência é tão grande, que chegamos a torcer para que a arca não seja aberta e que o assassinato conseqüentemente não venha a ser descoberto. Entendendo essa torcida pelos assassinos como uma identificação, podemos afirmar que Hitch nos leva a refletir (como é característico da ironia), a respeito dos nossos valores morais, assim como da ojeriza que temos por identificarmos em nós sentimentos que confrontam esses valores, pois se somos capazes de torcer pelos assassinos, fica claro que nós também estamos sujeitos a cometermos crimes e a sentirmos prazer com isso. Se essa hipótese estiver correta, podemos especular que a maneira de Hitchcock se contrapor a esse processo e impedir que cometamos as barbáries com as quais nos identificamos em seus filmes, estaria em um mecanismo muito semelhante ao da elaboração apontada por Cristhop Türcke , pois ao mesmo tempo em que ele nos mostra, que todos estamos sujeitos a sentimentos bárbaros, ele também mostra que devemos buscar uma forma criativa de exauri-los, como seus personagens, que elaboram diversas maneiras de cometer o crime perfeito ou como ele próprio, que constrói tramas, onde seus sentimentos mais bestiais, se transformam em assassinatos fictícios detalhadamente construídos. Tomemos como exemplo dessa afirmação o professor Rupert, que durante a trama chega a estabelecer diálogos defendendo e tramando assassinatos que lhe trariam benefícios, mas que no fim quando descobre a barbárie cometida por seus ex-alunos, se mostra totalmente indignado, como se os ideais que defendera antes tivessem sido dissipados com o proferir de suas palavras.


Enfim, aponto Festim diabólico como uma das minhas preferidas dentre a filmografia de Alfred Hitchcock, uma obra que nós permite pensar além dela, nós permite pensar as relações sociais e nossas atitudes cotidianas.

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