“VERTIGO” (1958) DE ALFRED HITCHCOCK

Camila Sandim de Castro


     Imagem 1 – Personagens do filme: Madeleine, à esquerda, e Judy, à direita, interpretadas por Kim Novak e Scottie,        interpretado por James Stewart.

        “Vertigo” lançado em 1958 foi baseado no romance “D’Entre les morts” escrito por Pierre Boileau e Thomas Narcejac. O filme traduzido para a língua portuguesa como “Um corpo que cai” apresenta um conflito entre a ilusão e a realidade e em alguma medida entre a culpa e a inocência, além de discutir a dificuldade de lidar com a perda do objeto amado. “Vertigo” recebeu o Oscar em 1959 por melhor direção de arte e trilha sonora e em 2012 foi eleito pelo Instituto de Cinema Britânico como o melhor filme dos últimos tempos, especialmente porque Hitchcock apresenta pela primeira vez uma técnica cinematográfica para simular a sensação causada pela vertigem ao misturar movimentos de zoom e de afastamento da câmera. 
O filme se passa em São Francisco/Califórnia e tem como personagens principais John “Scottie” Ferguson, vivido por James Stewart e Madeleine Eslter e Judy Barton, interpretadas por Kim Novak. Gavin Elster, interpretado por Tom Helmore, elabora um plano para assassinar sua esposa e com a ajuda de sua cúmplice Judy, que finge ser Madeleine, acredita que ficará livre da responsabilidade do assassinato. Enquanto a legítima Madeleine está passando uma temporada na fazenda da família seu marido executa o plano ao contatar o detetive Scottie, antigo colega de faculdade, que se aposentou depois de uma perseguição policial mal sucedida em função de sua acrofobia. Gavin convence Scottie a seguir cotidianamente Madeleine ao fazê-lo acreditar que sua esposa corre perigo por estar sendo tomada pelo espírito de sua bisavó, Carlotta Valdes, que teria suicidado. A temática do voyeurismo aparece no filme na medida em que Scottie ao seguir Madeleine por toda parte acaba se sentindo atraído por ela. Esse voyeurismo desperta tanto em Scottie quanto no espectador uma espécie de fascínio e obsessão pela bela Madeleine. Depois de uma tentativa de suicídio na baía de São Francisco Madeleine se aproxima de Scottie quando é salva por ele. Sabendo do medo de altura do detetive, Gavin faz com que Judy, já apaixonada por Scottie, o encaminhe para a torre de uma igreja, local em que o assassinato será consumado ao jogar a verdadeira Madeleine do alto da torre.


     Imagem 2 – Judy, à esquerda, vestida como Madeleine e Gavin prestes a consumar o assassinato de sua esposa.

          Scottie apesar de se esforçar para alcançar Madeleine não consegue chegar ao topo da torre percorrendo a escada, pois é tomado pelo medo de altura. É nesta cena que Hitchcock simula o mal-estar causado pela vertigem de Scottie ao fazer com que a escada se desloque, aproximando-se e distanciando-se do espectador. 



                            Imagem 3 – Cena da simulação da vertigem. 

Depois da morte da senhora Eslter o espectador descobre que Judy se passava por Madeleine e da metade do filme, quando é revelada a verdade para o espectador, até o final ele se mantém preso à narrativa porque quer saber como ficará Scottie quando descobrir o plano tramado por Gavin. Depois da morte de Madeleine, o detetive está em tratamento para superar além da perda de seu objeto de amor, a culpa que sente por não ter conseguido impedir a morte de Madeleine. No entanto, ao encontrar Judy sem ainda saber de sua ligação com o assassinato, percebe uma enorme semelhança entre ela e Madeleine. Com muito esforço consegue convencê-la a se transformar em Madeleine tingindo os cabelos de louro, utilizando o mesmo penteado e vestindo as mesmas roupas de sua amada. Há certa resistência de Judy para se tornar Madeleine já que ao fazê-lo se incriminaria, mas como está apaixonada por Scottie acaba cedendo a seu pedido. Na cena em que Judy aparece como Madeleine para Scottie vemos mais uma das técnicas cinematográficas hitchcockianas ao mostrá-la caminhando em direção ao detetive. Surgindo, primeiramente, como um fantasma para em seguida adquirir maior visibilidade e, finalmente, aparecer de forma nítida/viva na tela.

   
Imagem 4 – Cena em que Judy aparece para Scottie transformada em Madeleine: imagem fantasma.


Depois de transformada em Madeleine, Judy e Scottie estão cada vez mais envolvidos. Ao aceitar o convite do detetive para jantar Judy pede ajuda ao amado para prender um colar em seu pescoço, imediatamente, Scottie constata que era o mesmo colar usado por Madeleine. O colar denuncia que Judy fingia ser Madeleine revelando para o detetive o crime. Scottie obriga Judy a revisitar o local do assassinato a fim de encontrar provas que incriminem os culpados e ao mesmo tempo buscar algum tipo de consolo por se culpar pela morte de Madeleine. Dessa vez consegue controlar seu medo de altura arrastando Judy até o alto da torre onde revela que realmente a amava enquanto ela se mostra arrependida e implora por seu amor. No entanto, uma das freiras se assusta com a movimentação na torre da igreja e verifica o que está acontecendo, Judy atormentada com tudo o que havia acontecido se desequilibra ao constatar a presença da freira e acaba despencando do alto da torre. Novamente Scottie presencia um corpo que cai.
            A densidade do filme pode ser visualizada tanto nas temáticas sobre o conflito entre realidade e ilusão, culpa e inocência quanto no voyeurismo, no medo, na obsessão, além da qualidade das inovações técnicas cinematográficas. Através de “Vertigo” (1958) o espectador é incitado a pensar sobre seus próprios medos, sobre a lucidez e a insanidade, sobre a frieza e sobre o ato de olhar. Este aparece no filme não apenas como a ação de observar o cotidiano dos personagens, mas podemos entendê-lo como algo que nos convida para uma mudança na forma de olhar. Desse modo, podemos construir um olhar crítico e sensível que incite um pensamento autônomo e autorreflexivo. Ressaltamos ainda no filme a dificuldade de lidar com a perda do objeto amado ou de seu amor. Sobre isso, Freud escreve em 1929, no livro “O mal-estar na civilização”, que “nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor”. A obsessão de Scottie para transformar Judy em Madeleine evidencia a tentativa de amenizar o sofrimento causado pela perda da pessoa amada. Essa tentativa de reconstituir o objeto de amor pode ser entendida como uma espécie de experiência de luto. A obsessão presente em “Vertigo” permite pensar também sobre os dois traumas que aparecem na narrativa fílmica, a saber, o medo de altura e a já citada perda do objeto amado. Tanto para se livrar ou pelo menos amenizar o trauma, o personagem vivido por James Stewart desenvolve uma espécie de compulsão à repetição, termo estudado por Freud em “Além do princípio do prazer” escrito em 1922. Para o autor, o trauma se instala no momento em que devido à ausência de angústia a pessoa vivencia a situação pavorosa. Assim, a compulsão à repetição está ligada à tentativa de instalar a angústia de modo que ela funcione como um mecanismo de proteção para o sujeito preparando-o para um novo pavor/susto. Dessa maneira, tal compulsão é a forma como o doente lida com o trauma e na tentativa de se recuperar dele o sujeito repete a situação pavorosa a fim de elaborá-la. Sobre a repetição Christoph Türcke, estudioso contemporâneo que atualiza o pensamento de autores da Teoria Crítica como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, afirma em “Filosofia do sonho” (2010) que a compulsão traumática à repetição não deve ser entendida apenas como uma forma de lidar com o trauma, mas como produtora da cultura humana. Retornando ao tempo primitivo o autor comenta sobre os rituais sacrificiais realizados pelos primeiros coletivos humanos que quando vivenciavam situações que os apavoravam procuravam lidar com esse pavor repetindo-o, tornando-o menos pavoroso. Por meio da instalação do trauma, da compulsão à repetição traumática procuravam transformar aquilo que era estranho/pavoroso em algo familiar. Türcke assim como Freud entende que antes da compulsão à repetição existe um momento de desprazer causado pelo pavor, pelo susto vivido e que a elaboração é um trabalho psíquico de tentativa de assimilação, isto é, um trabalho interno que procura assimilar o que foi vivido e não significado. Vemos em “Um corpo que cai” a repetição executada por Scottie para lidar com seu trauma ao se submeter novamente ao medo de altura subindo os degraus de uma pequena escada em seu apartamento e também revivendo o pavor na escadaria da torre da igreja. Além disso, a reconstituição de Madeleine em Judy evidencia a tentativa de elaborar, de dar sentido ao pavor de perder o objeto amado. Podemos afirmar a partir de Freud e Türcke que Scottie através da repetição procura assimilar/elaborar os traumas vividos se submetendo a eles novamente. Para finalizar podemos comentar ainda sobre a forma que “Vertigo” é encerrada. Há críticas em relação aos finais de muitos filmes de Hitchcock em função da necessidade de atender às exigências das produtoras que financiavam seu trabalho. No entanto, em “Vertigo” Hitchcock permite que o espectador dê continuidade a seu filme quando apresenta na última cena Scottie olhando para baixo, para o corpo de Judy. O que acontecerá a ele já que novamente experiencia a perda do objeto amado? Conseguirá amenizar este trauma? Denunciará Gavin contando a verdade sobre a morte de Madeleine? A possibilidade de o espectador continuar a história narrada utilizando para isso a imaginação, a fantasia é um dos motivos que torna o cinema hitchcockiano tão atraente, provocador e atual.

Referências bibliográficas
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: _____ Obras Completas. Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

FREUD, S. O Mal-estar na civilização. Trad. José Otavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

HITCHCOCK, A. J. Vertigo. [Longa-metragem]. Produção e direção de Alfred Joseph Hitchcock. Produtora Paramount Pictures. Estados Unidos da América, 1958, cor, 128 min.

TÜRCKE, C. Filosofia do sonho. Trad. Paulo Rudi Schneider.  Ijuí: Editora Unijuí, 2010.

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