O Homem Errado (The Wrong Man)

Darlei Francisco de Souza

Não foi repentina, silenciosa, ou como um figurante a “aparição” que Alfred Hitchcock faz em O homem errado de 1957. Na penumbra onde só é possível visualizar sua silhueta, o diretor, com direito a discurso, apresenta a sua obra aos espectadores cujos elementos se diferenciam da pura ficção, já que a trama não se constitui propriamente em ficção. O homem errado narra uma história verídica que aconteceu no inverno de 1952, na qual Hitchcock não apenas se inspira nela para fazer um filme, mas tenta reproduzi-la fielmente, palavra por palavra. Há um caráter de documentário na obra reforçado pelo fato de que as cenas praticamente são gravadas nos mesmos locais em que ocorreram os eventos originais, os nomes das personagens principais são preservados, inclusive algumas pessoas que estiveram envolvidas com a história real participam do filme como coadjuvantes.
Hitchcock ao ler na revista Life a história do músico navaiorquino Christopher Emanuel Balestrero, fica seduzido com o fato de que tinha ali uma interessante narrativa real, que poderia virar um filme que abordasse o seu tema favorito: um homem que é acusado por um crime cometido por outro, mas que as circunstâncias o apontam como culpado. A partir dessa história o roteiro de O homem errado foi produzido.
Christopher Emanuel Balestrero (interpretado por Henry Fonda) vive em Nova York com sua esposa Rose (interpretada por Vera Miles) e seus dois filhos. Trabalha como contrabaixista no Stork Club ganhando um salário de 85 dólares por semana. Leva uma vida tranquila, chegando pontualmente em sua casa às 5h30min após o seu expediente de trabalho. Contudo, em um determinado dia, Balestrero ao chegar em casa encontra sua esposa se queixando de dores nos dentes, precisando fazer um tratamento que custaria 300 dólares. O casal com um orçamento apertado não possuía esse dinheiro; precisavam arrumá-lo o mais rápido possível, para que a dor nos dentes de Rose pudesse ser cessada.
 Pela manhã do dia seguinte, Rose encontra uma apólice de seguro em seu nome que poderia resolver o problema. Manny (como era conhecido) então pega o documento e vai até a seguradora para saber qual o valor que poderia receber com aquela apólice. Ao chegar à empresa as funcionárias lhe dirigem olhares assustados e desconfiados, confundindo-o com um sósia que havia realizado um assalto na empresa tempos atrás. Em decorrência disso, Manny é denunciado à polícia como o principal suspeito dos assaltos. A fragilidade do julgamento humano é, desse modo uma das questões exploradas no filme.
Após encerrar seu dia de trabalho, beber seu tradicional café e tomar o trem em direção à sua casa, Balestrero ao chegar à porta de sua residência ouve vozes dizendo – “Ei Chris!” algo que lhe soava estranho, pois era designado costumeiramente por Manny. Aqueles homens que o chamavam eram policiais que foram investigar a acusação que recaíra sobre ele. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, Manny atende os policiais e entra na viatura para ser encaminhado para os procedimentos investigatórios. De chapéu e casaco entra nas lojas assaltadas, porém ninguém o reconhece. Na delegacia ao transcrever o bilhete que o bandido deixou após um assalto, a sua letra se assemelhou a dele, fato que a princípio não significava muita coisa. Mas, para seu azar cometeu o mesmo erro de ortografia do assaltante. Além disso, todas as testemunhas que foram fazer o reconhecimento na delegacia o incriminam em meio a vários homens. As circunstâncias estão contra Manny; elas o apontam como o criminoso. E a polícia baseada nos relatos das testemunhas e nos testes de escrita decide prendê-lo.

Policial encarando Manny pelo retrovisor

Aí começa seu sofrimento. Aí também o tipo de suspense que permeia O homem errado pode ser percebido com mais nitidez. Alguns analistas da obra apontam que Hitchcock trouxe para o cinema, por assim dizer, um ‘processo’, assim como Kafka faz em seu conhecido livro Der Prozess (O processo) – obviamente com algumas distinções. Hitchcock com suas imagens carregadas de ideias tenta mostrar a história a partir do ponto de vista do acusado. O desenvolver da trama promove tensão do início ao fim, pois a cada nova cena, o processo que envolveu Manny parece sufocá-lo ainda mais. Uma teia de acontecimentos parecida com a que recaiu sobre Josep K. (personagem de Kafka) envolve-se sobre Manny. Aliás, são vários os pontos de contato entre os protagonistas das duas obras. Ambos foram acusados por delitos cometidos por outros; não exerceram resistências durante sua reclusão e não se mostraram revoltados; por terem certeza de sua inocência colaboraram com as investigações policiais acreditando na absolvição.
Os desdobramentos do processo de Manny Balestrero tornam mais delicada a sua situação. A capacidade de Manny de suportar o sofrimento é testada em cada nova cena. A falta de provas que pudessem inocenta-lo afeta a todos que convivem com ele. Respondendo o julgamento em liberdade após sua fiança ser paga, ele não consegue encontrar nenhuma testemunha para depor em seu favor; os álibis que procura estão mortos. Não obstante, Rose se sente culpada pelo que aconteceu com seu marido e começa a ter surtos de loucura ao ponto de ser internada em um hospital psiquiátrico. Hitchcock atribui uma das fragilidades do filme a esse acontecimento: [...] “minha vontade ferrenha de seguir fielmente a história original foi a causa de graves fraquezas na construção. O primeiro ponto fraco é que a história do homem foi interrompida um longo momento pela de sua mulher, que se encaminha para a loucura, e por isso o instante em que chegávamos ao julgamento era antidramático. Em seguida o julgamento se concluía de forma muito brusca como aconteceu na vida real”.
Só um milagre poderia esclarecer o caso. Com o julgamento sendo anulado, Manny teria de passar por tudo outra vez. Esse insuportável processo o faz desejar a sua culpa.  Em frente à imagem de Jesus Cristo ele se põe a rezar e seu rosto gradativamente vai desaparecendo, e a imagem de outro homem que se parece muito consigo vai ficando mais clara. Ele é o verdadeiro bandido que está prestes a cometer outro crime. Ao entrar na loja e anunciar o assalto o comerciante o captura e avisa a polícia. Com isso Manny fica livre as acusações, mas se encontra parcialmente aliviado, pois sua esposa ainda estava doente.

Cena em que o rosto de Manny vai desaparecendo gradativamente e o verdadeiro bandido vai surgindo.

O final do filme não foi como Hitchcock desejava, pois ele pretendia deixar o final em aberto, sem muitas explicações sobre o que aconteceu com Rose. Até porque na vida real, a família até o lançamento do filme em 1957, ainda sofria com problemas decorrentes do que aconteceu em 1952.  Mas, provavelmente sob pressões do Studio o diretor teve que colocar algumas informações textuais para fechar a obra com o tradicional final feliz. 

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