Por: Dalva de Sousa Lobo
FICHA
TÉCNICA
Título
original:
Marnie
Ano
de lançamento:
1964
Direção: Alfred Hitchcock
Produção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Jay Presson Allen, baseado num
romance de Winston Graham
Duração: 130 minutos
Elenco:
Tippi Hedren (Marnie), Sean Connery (Mark), Diane Lane (Lil), Martin Gabel
(Strutt)
Considerado o último
filme da época de ouro de Alfred Hitchcock, Marnie,
confissões de uma ladra, homônimo do romance com o mesmo nome, do escritor
inglês Winston Graham, o enredo, adaptado para o cinema, apresenta personagens
menos complexos se comparados aos filmes anteriores do mestre do suspense, embora
mantenha certa pitada de humor e trama psicológica.
Filmado em 1964, Marnie
conta com os atores Tippi Hendren -(Marnie), conhecida pela brilhante atuação
em Os pássaros, um clássico do
suspense hitchcockiano e Sean Connery, no papel de Mark Rutland. A interpretação de Hendrren nada fica devendo
à Grace Kelly a quem inicialmente caberia o papel de protagonista. A estrela de
Os pássaros em nada lembra a fria e
distante personagem que assistimos em Marnie.
Outro destaque é a
música composta por Bernard Hermman, na qual há um significativo hiato entre o
som e o silêncio, este, longo o suficiente para assegurar o clima de suspense hitchckockiano.
Quanto à personagem,
Marnie, ela é regida pela compulsão por roubar e mentir, o que seria
considerado cleptomania, não fosse o fato de que é especificamente o dinheiro
que lhe interessa e não qualquer objeto, como é o caso do cleptomaníaco. As falsas identidades (por meio de seguros
sociais) que ela assume para conseguir empregos apontam para um desequilíbrio
em sua personalidade e um convite à interpretação psicanalítica, outra
característica dos filmes de Hitchcock.
Chama atenção também a
plasticidade, a inteligência e a frieza do comportamento, além do requinte no
preparo do crime, algo que vai desde a composição do visual - cabelos louros (bem
ao gosto de Hitchcock) e presos com esmero, taillers
discretos que pouco deixam à mostra, até o distanciamento mesclado com a
simpatia que acabam por conquistar a confiança dos patrões que se deixam
seduzir por sua beleza e suposto caráter.
Cabe mencionar ainda o comportamento
pudico e quase asséptico que compõe a personalidade de Marnie, a exemplo da
cena que antecede sua entrevista com o futuro patrão e vítima, Sr. Sidney
Strutt (Martin Gabel). Enquanto espera na sala ao lado, ela, ao notar o olhar desejoso
de Mark, amigo de Strutt e futuro patrão, cruza as pernas e discretamente
arruma a saia.
A mistura de recato e
desafio no olhar dá a tônica à sua sexualidade reprimida mostrando com sutil
ironia o aspecto “decente” que a personagem faz questão de declarar ao longo da
trama, sobretudo quando se vê criticada pela mãe. A ladra “imaculada” fica
assim justificada em seus atos de apropriação do patrimônio alheio, uma vez que
estes são suavizados pela atitude pudica com relação ao sexo oposto.
Roubo após roubo,
Marnie acaba por conseguir colocação na empresa de Mark, na qual também pratica
roubo. No entanto, ao contrário das vezes anteriores, ela é finalmente
desmascarada e a partir de então se vê obrigada a conviver com Mark, que a
desposa em troca de sua liberdade.
As relações de poder se avultam tanto no
aspecto psicológico quanto no econômico já que Mark oscila entre o salvador e
psicanalista e o proprietário de um objeto de desejo, no caso, Marnie.
Por que os roubos? Em princípio um forte trauma de infância
parece ser o deflagrador do comportamento da personagem, todavia, segundo
comentários do crítico João Bernardo da Costa, o viés psicanalítico segue em
direção ao desejo sexual sublimado, esse, sim, o MacGuffin, já que a personagem se considera “decente”, apesar de
ladra.
Outro dado importante
do filme é o paradoxo entre o sentido de “limpeza” bem metaforizado na cena em
que Marnie “limpa” o cofre enquanto a faxineira limpa o escritório. Novamente,
a genialidade de Hitchcock ao filmar no mesmo ângulo a ação concomitante das
duas personagens. De um lado, Marnie, de outro, a faxineira, ambas concentradas
em seus afazeres sem se dar conta de outra presença.
Ironicamente, o espectador se flagra
torcendo por Marnie quando um dos sapatos ameaça cair do bolso do casado e
denunciar sua presença.
Apesar de todo requinte
da trama, esse não foi considerado o melhor filme do mestre do suspense e do
ponto de vista da inteireza apresenta algumas lacunas a exemplo do papel do pai
de Mark e da cunhada que parecem confusos ou pelo menos não tão bem explorados
como poderiam.
O que se faz presente são as relações de
poder econômico e social e de desejo, no caso da cunhada de Mark, cuja vida
parece girar em torno do desejo de manter o status
quo atual e o de conquistá-lo.
Quanto a Mark, seu
desejo por Marnie oscila entre a apropriação de um bem desejado, ao menos
inicialmente, e o afeto verdadeiro, ou ambos como se vê em várias cenas. Há
momentos em que o afeto se sobressai, como no barco, quando demonstra paciência
para com a frígida esposa.
Por outro lado, fica claro o papel do
sedutor que tem em suas mãos o poder de liberdade sobre aquela que até então
era algoz e se torna vítima por meio do casamento forçado com o ex-patrão.
Ora sedutor, ora
apaixonado e gentil, ora psicanalista e proprietário, é fato a tensão sexual entre
Mark e Marnie e, se por um lado, ele a salva, por outro parece se apropriar
dela, ao desposá-la em troca da liberdade.
No entanto, o princípio de cura
traumática ocorre graças a atitude primeiramente possessiva e depois afetiva
por parte de Mark. Do jogo de palavras que trocam à cena posterior ao tiro que
ela dá em seu cavalo que cai e se fere, é por meio do marido que ela encontrará
forças para enfrentar os fantasmas da infância.
Ao flagrá-la tentando
apanhar dinheiro do cofre após matar seu cavalo, Mark deixa claro que o
dinheiro pertence a ambos e com isso ela, que por si mesma já não teve forças
para apropriar-se do dinheiro, acaba se deixando guiar até a casa da mãe
Bernice, personagem interpretada de forma brilhante por Louise Lattham.
O que se vê a partir de
então é a revelação por parte da mãe, uma figura complexa que ao mesmo tempo em
que ama a filha tem nela a marca de um erro do passado. Novamente o que se nota
é a mãe problemática recorrente dos filmes do mestre do suspense.
Sob um fundo musical
magistralmente conduzido com acordes entre o suspense e a comoção as cenas que
configuraram o trauma vão se desnudando diante de Marnie.
A mãe se prostituía para sustentar-se e
a filha, o que explica o comportamento severo de Bernice quanto a imagem pudica
a ser preservada pela filha, que segue à risca a ordem de manter-se decente,
ainda que ladra e mentirosa, como se auto denomina Marnie.
A fobia por clarões, trovões e pela cor
vermelha está diretamente associada à noite em que, ainda criança, mata o
marinheiro, cliente da mãe. Daí que roubar e manter-se decente tornam-se signos
de dignidade, por isso roubar é menos criminoso do que perder a castidade. Um
detalhe curioso é a repetição da frase “está tudo bem agora” quando mata o
cavalo e quando mata o marinheiro palavras com força suficiente para escamotear
a realidade com a qual se depara na casa da mãe.
Centrada na figura da
mãe, ao resolver o trauma, Marnie parece compreender pela primeira vez que
precisa de ajuda e tem em Mark, o qual assume em definitivo, o papel de
protetor. O problema não é resolvido, não há mágica, e é nesse sentido que se
confirma o toque magistral de Hitchcock quanto à elaboração da trama.
Embora não tenha sido considerado seu
melhor filme, é fato que a trama caminha em direção à tríade sexo, liberdade e
poder econômico, talvez uma das chaves de leitura para refletir sobre a
condição humana e quando somada à perspectiva psicanalítica, deixa em aberto
nossa suscetibilidade e fragilidade.
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