A idade do Ouro (L' Age d' Or) - 1930



Resenha por Fabiano Marcondes Sales e Rosana Vicente Ramos



As primeiras cenas de “A Idade do Ouro” são dedicadas à descrição dos escorpiões; seus hábitos e características. Essa descrição é feita com o objetivo de se fazer uma comparação entre o mundo dos escorpiões e o mundo burguês. De fato, Buñuel, em A Idade do Ouro, nos faz notar grandes semelhanças entre esses dois mundos. Os escorpiões são descritos como criaturas venenosas, amigas das trevas, incapazes de dividir seu espaço. Criaturas traiçoeiras, que aparentam fragilidade, mas são letais. O burguês é mostrado da mesma forma: competitivo, dono de um sorriso que esconde jogos de poder. Sob a ótica de Buñuel, é característico do burguês agir nas sombras, em um mundo que valoriza as aparências, numa organização carente de significado. De forma sutil, essa carência de significado é satirizada durante todo o filme.


A sequência de cenas seguinte começa com a imagem de um homem só, em um lugar deserto. Após caminhar um pouco, percebe alguns religiosos meditando sentados em uma rocha. O homem apenas passa por eles. A cena agora é de uma cabana com alguns homens lutando entre si e por sobrevivência, todos armados com rifles e pistolas. Um homem se empenha em enrolar uma corda, sem sucesso, enquanto outro, que anda apoiado em uma muleta e uma arma, tenta cortar essa corda, em vão. A cena representa a luta dos que se rebelaram contra o ordenamento vigente, tentando romper com os costumes da sociedade. Nenhum deles consegue chegar ao seu destino, pois, após longa caminhada, o homem do início desta seqüência chega a essa cabana, se encontra com seus companheiros, que saem, e vão caindo um a um.


Na impossibilidade de criticar abertamente a burguesia, Buñuel utiliza a ironia como instrumento para fazê-lo. Esse elemento pode ser percebido, na cena em que os burgueses param para homenagear os ossos dos religiosos mostrados anteriormente, antes de prosseguir à inauguração do que será uma mina. O tempo passou até essa cena. Pessoas chegam ao local com barcos e canoas. São homens e mulheres muito bem vestidos. Eles olham para os esqueletos demonstrando respeito. Os esqueletos representam a igreja como instituição decadente, mas ainda forte o suficiente para representar a salvação. Para esta sociedade, talvez a única. Por alguns segundos as pessoas demonstram respeito pelos esqueletos e pelo local onde eles se encontram. Depois continuam seu caminho. O enfoque da cena está no paradoxo que há no ato de se valorizar a espiritualidade, ao mesmo tempo em que se age com crueldade, e se ignora o que acontece fora de seu mundo, até que esses acontecimentos interfiram em suas próprias vidas.


Ouve-se um grito. Todos olham e vêem um homem e uma mulher no chão, sujos, se beijando. Os outros os chamam de porcos e os separam. Os dois se olham enquanto são separados. O homem se lembra da imagem da mulher e a associa à de um banheiro, com um som de descarga e uma cena de barro borbulhando. A cena representa a sujeira da burguesia, em todos os sentidos, corpos sujos e também os pensamentos. A mulher continua no local e o homem é levado por dois guardas. Ele ouve um cachorro latindo, se solta dos guardas, retorna, e chuta o cachorro. Caminha um pouco, e, ao ver uma barata no caminho, se solta dos guardas novamente e pisa nela. É muito significativa a necessidade demonstrada por ele de maltratar os que se encontram em situação de vulnerabilidade, pois remonta ao comportamento desrespeitoso da burguesia em relação aos demais.


São mostradas imagens da cidade e também construções do Vaticano. Um Café é mostrado, onde os burgueses se encontram sentados do lado de fora. Um homem bem vestido sai do recinto, todo empoeirado. Ele procura se limpar batendo a poeira com as mãos, incomodando as pessoas ao redor. A cena demonstra o incômodo causado pelos estrangeiros na França na época de Buñuel. Os guardas e o homem chegam à cidade. O homem vê cartazes de propaganda direcionada às mulheres e, em seu pensamento, as imagens se transfiguram, passando a conter elementos distorcidos de sexualidade.


Um dos pontos altos da sátira de Buñuel se dá na cena em que os burgueses fazem uma festa. Elementos como o grande bigode de um personagem de baixa estatura, as moscas no rosto de um senhor com ares de importância, remontam à pretensão de poder, de aparentar ser maior do que se é na verdade. Quando um carro de boi atravessa pelo meio do salão, com indivíduos mal vestidos rindo e bebendo, causando apenas exclamações dos convidados, a crítica à alienação burguesa se torna ainda mais clara. Também chama a atenção o momento em que uma cozinheira se queima e ninguém lhe presta socorro. Ao contrário da comoção geral causada no momento em que o protagonista desfere um tapa na dona da casa, cena em que, Buñuel quis, de maneira explícita, agredir a burguesia, tendo em vista que, a dona da casa é uma digna representante da classe.


Há uma infinidade de desejos que nunca se concretizam, resultantes da organização da sociedade burguesa, que não quer permitir que os indivíduos sejam aquilo que desejam.
O valor da obra de Buñuel está em seu caráter provocativo. A função é levantar questões, abalar certezas, instigar a busca por significados, sem o compromisso de produzir uma resposta pronta e terminada, pois, não segue as normas ditadas pela razão, como é característico de uma obra surrealista.


Na obra de Buñuel, a reflexão não segue uma sequência pautada pelo que se entende por razão. As reflexões são produzidas de forma associativa, baseadas em vivências e idéias anteriormente produzidas, sendo que, essas reflexões só são racionalizadas num segundo momento, quando produzimos juízo sobre elas.


Ao apreciar uma obra surrealista o espectador é induzido a produzir um julgamento direcionado, diferente de quando admira uma obra de outra natureza, em que, de acordo com seu grau crítico, pode decidir se concorda ou não com a ideologia que ela expressa.

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