Resenha do filme “I Confess” (1952) de Alfred Hitchcock

Confissão ou Tortura do silêncio

Por: Profa. Dra. Luciana Azevedo Rodrigues


FICHA TÉCNICA
Título original: I Confess
Ano de lançamento: 1953
Direção: Alfred Hitchcock
Produção: Alfred Hitchcock
Roteiro: George Tabori, William Archibald, baseado na peça de Paul Anthelme
Duração: 95 minutos
Elenco: Montgomery Clift (Padre Logan), Anne Baxter (Ruth), Karl Malden (Inspetor Larrue), Brian Aherne (Willy), O. E. Hasse (Otto), Dolly Haas (Alma)




I confess é um filme de Hitchcock exibido pela primeira vez em 1952 e traduzido para o português como “A tortura do silêncio”. A obra se estrutura em torno de um assassinato, um amor e uma confissão, temas recorrentes na obra do cineasta inglês. Diante das críticas direcionadas ao filme sobre a sua falta de humor, o próprio Hitchcock argumenta que não faltou humor ao filme, mas à sua maneira de construí-lo. Apesar disso e das críticas que subestimaram a obra, uma das pretensões desta resenha é destacar a densidade e riqueza de seu conteúdo e forma.
A questão de imediato apresentada no filme inicia com a confissão de um assassinato no confessionário de uma das várias igrejas de Quebec, nos Estados Unidos. Outra questão, que em nosso olhar, atravessa a obra e assume um tom mais profundo remete a situação ambígua de um esforço humano para ocultar algo acompanhado da sua revelação distorcida diante de lugares e pessoas inimagináveis.
Depois de mostrar em diferentes planos placas com indicação de direção única e diversas igrejas enquadradas de baixo para cima, o filme mostra um homem morto e seu assassino retirando seus trajes de padre e se dirigindo a uma igreja. É no confessionário que o assassino revela seu crime e suas motivações. A partir daí, enquanto o padre se esforça para manter o segredo da confissão; o assassino, aliviado pela mesma, se esforça, ao longo do filme, para transferir não apenas o peso da culpa ao padre, mas o próprio assassinato.
No interior desta situação em que bem e mal estão em posições contrárias, claras e distintas, Hitchcock insere elementos em que o mal passa a ser mostrado no bem e o bem no mal. Ou seja, o mal presente no assassinato assume tonalidades de algo bom para o padre que vinha sofrendo e acompanhando o sofrimento de sua ex-noiva com as chantagens feitas pelo homem assassinado, ironicamente, um advogado.
Ao apresentar esses elementos, o filme aborda, explicitamente, a capacidade de um padre guardar em segredo um assassinato revelado no confessionário, mesmo diante de uma situação em que se torna o principal suspeito de ter cometido o crime. Implicitamente, entretanto, o filme vai pouco a pouco indicando à incapacidade do padre de assumir sua dimensão humana, sujeito a afetos e a erros como qualquer outra pessoa, no caso do filme, alguém que viveu um grande amor e não pode continuá-lo, depois de participar de uma guerra, pois em seu retorno reencontrou sua ex-noiva casada com outro homem.
Além da confissão que deu início ao filme, no quarto final da película é apresentada outra confissão num lugar que não costuma perdoar, mas, fazer pagar pelo crime cometido: uma delegacia. É lá onde a mulher que tinha sido noiva do padre revela ter estado com ele no momento que acreditava ser o do crime cometido. Para mostrar a inocência do padre ela sacrifica sua imagem de mulher casada e a do próprio esposo, que escuta tal confissão e mesmo assim dá indícios de compreensão. Diante do delegado, do promotor de justiça, as perguntas que responde se afastam cada vez mais do crime de assassinato e remetem muito mais ao crime de ser incapaz de controlar um sentimento e de poder expressar isso. Algo que, em nossa leitura, aponta para o rancor da lei frente ao que não consegue dominar plenamente. A partir desse momento, o filme enfatiza muito mais o crime de um padre e de uma mulher casada de sentir, de amar alguém proibido pela lei.
Nesse sentido, o filme consegue ironizar não só a justiça, mas também os sacramentos da confissão, do celibato e do matrimônio, permitindo pensar que a perseguição cega de todos eles fazem com que o bem seja o mal.
Ao expectador é fornecida a informação de que o padre não é o culpado pelo assassinato, mas a crítica a igreja e a sua postura de jamais se colocar no banco dos réus, jamais se confessar pelos crimes cometidos, atravessa a obra como um todo em vários níveis é bastante sutil.
Ao remeter à história do padre como ex-combatente, como alguém cujos planos não era a eucaristia e, sobretudo, tinha motivos para querer a morte do assassinado, o filme aponta que a tortura do silêncio não derivava tão somente da confissão recebida.
A revelação de seu crime de amor estendida ao próprio julgamento, realizado a princípio pela acusação de assassinato, faz com que o padre seja condenado por todos os presentes, ao mesmo tempo em que é inocentado do assassinato pelos juízes e jurados. Sua condenação ficava clara: era devida à sua relação com uma mulher. Esta nos parece ser a cena que deveria finalizar a obra, mas o que decorre em seguida são cenas em que o “verdadeiro criminoso” é descoberto e o padre “inocentado” fazendo com que o final do filme se ajuste aos moldes da intocável indústria da cultura comprometida com a reafirmação do mundo tal qual ele se encontra, com cada coisa em seu devido lugar- o bem de um lado e o mal do outro.
Apesar disso, é importante perceber que no interior da obra, existem imagens fantásticas que formam diferentes camadas para a sua leitura e que reiteram que ela não fala só de algo mal, admitido em um confessionário, mas de algo que se torna mal e se intensifica como tal por sequer ser confessado. E isto permite que a obra fale da igreja como instituição que não passa pela confissão justamente porque se coloca sempre como a instituição que não precisa passar por ela: eis aí o imbróglio que se repete na aparência reta e obstinada do padre, interpretado pelo ator Montgomery Clift, na convicção que pesa sobre ele e a qual ele insiste em demonstrar: sua capacidade de ser imune ao amor e ao ódio.
            Nesse sentido, apesar do humor parecer não existir neste filme, o comportamento reto do padre é levado à máxima potência até assumir tons de humor muito refinados. Diante de tal comportamento, o próprio público se estranha. Um dos momentos de destaque da ironia diante de posturas sempre retas de um ser humano e de uma instituição social pode ser acompanhado no inicio da obra quando o assassino, apenas depois de se confessar e ser perdoado no confessionário é mostrado com a força de um assassino. É como se o diretor estivesse indicando a ausência de culpa pelo assassino como aquilo que precisa ser problematizado, assim como a ausência de culpa de instituições e seres humanos que se colocam acima de qualquer mal. 
Quando começa trazendo, em primeiro plano, as placas de trânsito da cidade que Quebec que indicam direção única, é como se o filme já introduzisse a seguinte questão: assumir sempre uma única direção conduz ao crime. E o sentido único da igreja continua sendo problematizado ao longo de toda obra, quando em seguida são apresentadas cenas em que a cor da pintura das paredes da casa paroquial é o principal tema e muito especialmente a existência de tintas que não deixam cheiros. Com estas cenas, mais uma vez é a ideia de tornar algo bonito e ao mesmo tempo não deixar vestígios de que algo foi feito para que se tornasse assim, como se se quisesse afirmar a beleza e a bondade como algo natural, algo que não resultou um processo- uma dádiva.
O enquadramento da câmera que, de acordo com o cineasta francês. F. Truffault, melhor expressa a cinematografia de Hitchcock neste filme é aquele em que a mulher do assassino serve a mesa do café da manhã aos padres sem tirar os olhos daquele que recebeu a confissão. Conforme Truffault, nela, sem dizer uma só palavra, Hichcock mostra alguém com medo, que está buscando advinhar o que se passa pela cabeça de outra pessoa apresentada como referência de bondade e, ainda o conflito interno do padre, o qual se acentua com a confissão recebida, que tem fortes bases na história vivida e não confessada pelo próprio padre, como se indicasse que mesmo em confissão ela não conseguia ser narrada.
Para finalizar é preciso destacar que o estabelecimento de relações mais duradouras com as obras de Hitchcock permite perceber que a indicação de Truffault se dá porque as imagens nos filmes do cineasta se referem muito mais a interioridade humana do que ao mundo externo que a constituiu. Embora se trate de um padre, forte representação do bem e de um refugiado alemão, extrema representação do mal, o filme torna possível ver que o pesar do padre não advém simplesmente da confissão que recebeu mas da confissão que ele não conseguia fazer. Não aquela devido a proibição do voto religioso mas a oriunda da proibição do sentimento de culpa.
O próprio cineasta considera o roteiro deste filme o primo irmão de outro traduzido para o português como Pacto Sinistro, de 1951. Tanto em um filme como no outro o público encontra alguém que comete um assassinato sem ter motivos – afinal não se trata da pessoa assassinada mas do dinheiro que ela possui-  e outra pessoa que apesar de ter motivos, não o faz, e acaba beneficiada com o assassinato cometido por outro. Este último é o Padre, já o primeiro é o alemão que só buscava por dinheiro na casa de um advogado que apesar de morto era alguém que extorquia dinheiro da sua ex-noiva fazendo-lhe chantagens.

E quando, enfim, este passado se torna público, o padre, inocentado no julgamento é condenado de todos os lados e por todas as pessoas, não pelo assassinato mas por ter sido alguém que também viveu um amor com outro ser humano. A agressão que daí começa a se desdobrar entre as pessoas precisa ser pensada como resposta explosiva da percepção da “falta de pureza” de seus representantes religiosos coadunada com a postura daqueles que se julgam “puros” e, portanto, incapazes de praticar ou desejar qualquer mal. É aí, nesta questão tão séria que também se coloca o humor hitchcockiano. Ele aponta para impossibilidade de realização de tal pureza acenando para o humano.


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