Os incompreendidos

Os incompreendidos - LesQuatreCentsCoups (Original)
Direção, roteiro e produção: François Truffaut

Por Carlos Betlinski e Darlei F. de Souza

O filme de 1959 é o primeiro longametragem de Truffault e lhe rendeu a premiação no festival de Cannes. Tem um caráter autobiográfico, pois é baseado na pré-adolescência do próprio cineasta, agora representado pelo personagem Antoine Doinel.

O diretor procuramostraras tentativas e dificuldades de um garotopara se relacionar com asprincipais instituições sociais de sua época: a família e a escola. Com um tom crítico e ao mesmo tempo envolvente, o filme consegue mostrar a realidade do tratamento dados aos adolescentes nessas duas instituições, desvelando um processo educativo e uma moralidade problemáticos para os ideais de liberdade e convivência social humanizada.

A narrativa, construída de forma linear, conta a história de um garoto - Antoine Doinel e seu fiel amigo Renê - que apresentam um comportamento irreverente e problemático para os padrões morais da época. Tal como fora a adolescência de Truffault, o garoto é castigado na escola, seus pais são desatenciosos e indiferentes com ele.Constantemente falta às aulas para ir assistir filmes e vagar pelas ruas de Paris.Com a ajuda de seu amigo comete pequenos furtos para sobreviver na rua,depois de abandonar a família e a escola. Diante de uma personalidadeque a escola não soube acolher e da incapacidade de seus pais e professores direcionarem sua conduta ele foi enviado para um reformatório como forma de prover seu disciplinamento e correção moral. Entretanto, o garoto consegue fugir do reformatório em busca da liberdade. A famosa cena final do filme mostra Antoine andando pela praia até chegar ao mar e termina com um olhar fixo para a câmera deixando uma provocação para o expectador.Como as instituições e os educadorescuidarão da educação das novas gerações para a convivência em sociedade. É possível educar em liberdade e para o exercício da liberdade?

Do ponto de vista estético o filme é marcado pelas características do realismo, sensibilidade e emoção provocadas pelo diretor em relação aos personagens Antoine e seu amigo(René)com suas estratégias para fugir da escola e sobreviver nas ruas da cidade. Ao abordar com muita leveza e sinceridade os temas da educação e das instituições sociais o autor recorre à arte cinematográfica, que, com opoder das imagenstrata de questões polêmicas, moralidades e desencontros da vida de um adolescente; apresenta a realidade das instituições sociais como família, escola, poder judiciário e o reformatório, mas não assume postura maniqueísta e nem julga o padrão de moralidade e de funcionamento dessas instituições.

Truffault utiliza técnicas de filmagens como os planos-sequência longos e fazváriastomadas externas que permitem ao expectador ingressar na realidade e se envolver com ela. Seu propósito é apenas revelarsituações e comportamentos que possuem a força devivificarnossa própria memória. Entretanto, não julga e nem constrói um melodrama. Ele deixa para o espectador a possibilidade de ler essa realidade e formular sua avaliação crítica.

O diretor utiliza outro artifício ou técnica: o movimento de câmera panorâmica que acompanha o protagonista, mostrando o ambiente em que ele se encontra. Para evidenciar o sentimento de inadequação vivido pelo protagonista, principalmente nas cenas ocorridas no ambiente escolar, utiliza a câmera alta (plongeé) para demonstrar a opressão de Antoine perante seu professor.  Outro momento em que esse recurso é utilizado é quando a mãe de Antoine (interpretada por Claire Murier) vai ao reformatório visitá-lo e dizer que desistiu dele.

Nas cenas em que Antoine aparece cometendo pequenos delitos ou faltando às aulas, utiliza a câmera baixa (contra-plongeé), com o intuito de demonstrar o espírito livre e rebelde de Antoine.  A cena final é no mínimo instigante: a câmera panorâmica acompanha a fuga de Antoine, até que ele entra no mar e brinca com a água. O filme termina com ele “encarando” o telespectador. Uma maneira singular de terminar o filme.

Em relação aos temas tratados destacamos a questão do papel das instituições no processo de adaptação dos adolescentes e sua preparação para a vida moral, embora hipócrita, esperada pela sociedade. O que se destaca no filme é uma concepção tradicional de educação que perpassa as práticas e os rituais dessas instituições (família, escola, reformatório). O exercício do poder autoritário, os exercícios de condicionamento, a imposição do medo, a repetição automática de comportamentos programadospara as crianças e adolescentes.Os objetivos das instituições educativas são: a padronização da conduta moral, disciplinamento e a subjetivação imposta através do rigor e do medo.

A cena inicial do filme, quando Antoine é repreendido pelo professor e proibido de sair da sala de aula para o recreio, nos permite uma relação com os estudos de Michel Foucault em Vigiar e Punir, quando entende que a disciplina torna-se o grande alvo a ser alcançado. Também o rigor e o exercício do poder de forma arbitrária pelo professor são elementos que, ao lado da disciplina dos alunos e dos próprios professores, garantem o funcionamento do sistema educativo. Manter os professores e alunos em um regime disciplinar como de operários fabris, produzindo e aproveitando todo o tempo designado e, submetidos a um poder hierárquico são recursos e técnicas para a subjugação das pessoas implicadas no sistema.

Alcançar essa disciplina ideal, que possibilitaria o aprendizado maximizado no menor tempo possível, torna-se o objetivo da escola, do professor e dos métodos utilizados. Dessa maneira, formas antiquadas e autoritárias de lidar com os alunos tornam-se comuns, quando, por exemplo, o professor utiliza-se de coerção física – jogando um giz e segurando o menino pela gola da camisa – e humilhação perante a classe para disciplinar seu aluno, que, ao contrário, tem uma reação no sentido oposto, ou seja, de não se deixar disciplinar, de rebeldia contra uma ordem que o oprime.

As cenas do filme no âmbito escolar revelam a atitude de um professor nada propenso ao diálogo e que não faz nenhuma tentativa para compreender o mundo dos estudantes,além de simplesmente tentar enquadrá-los em uma forma ideal de comportamento. Essa postura adotada pelo professor pode ser a causa do desinteresse pela escola por parte dos personagens Antoine e Renê. A falta de diálogo entre professores e alunos e uma disciplina que tenta moldar o aluno para tipo ideal, assim como a fala dos professores que entendem que o recreio é um prêmio e não um direito, também revela que estar dentro de sala de aula é um martírio, já que o recreio é visto como prêmio.

Do ponto de vista da educação destacamos as práticas da pedagogia tradicional praticada na escola e que está estampada na figura autoritária do professor, na forma de organização do espaço de sala de aula e no método como se desenvolve o aprendizado. Essa prática pedagógica ignora o potencial e os valores estéticos da criatividade, sensibilidade e criticidade de seus alunos, tal como Antoine tentou fazer com o estudo e apresentaçãode um sobre Balzac. Foi reprimido e humilhado pelo professor diante de seus colegas.

Outra questão própria do mundo escolar é a ausência de vínculo entre escola e família. No filme os pais aparecem na escola para procurar o filho depois que esse havia fugido de casa. Esse é o único contato dos pais com os professores embora o aluno tenha uma família desestruturada, essa situação não interessa à escola. A vida exterior dos alunos e de suas famílias não interessa. A escola utiliza métodos muito tradicionais e não considera as experiências dos alunos se tornando uma instituição fechada em si mesma. Desse modo a escola não interessa ao aluno porque essa não tem ligação com sua vida e nem mesmo sabe quem são eles.

A cena final do filme merece uma interpretação dialética da realidade tratada, ou seja, a disciplinamento, o controle institucional, a adaptação intencionada pelas instituições sociais e educadores e, por outro lado, a fuga do garoto em direção ao mar permite uma interpretação crítica da realidade tratada no filme.

A cena poética do marrevela sua imaginação e curiosidade. O mar representa ou anuncia a descoberta, ainda que impactante, de uma nova realidade, uma experiência sensível de experiência alegre, de fascinação, de choque, de realização. Representa o mundo estético, das contradições, onde diante do mistério e da grandiosidade da vida não se pode ficar aprisionado às moralidades e práticas das instituições disciplinadoras, de uma educação castradora e autoritária. Existe um mar, uma grandiosidade de possibilidades. A transformação das instituições depende da imaginação,curiosidade, sensibilidade, do sonho e da rebeldia das pessoas envolvidas com as elas e com os processos educativos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário