Na Idade da Inocência



Por Elisangela B. C. Xavier

O filme “Na idade da inocência”, produzido por François Truffaut em 1976 aborda à infância através da reunião de pequenos episódios em que o autor apresenta diversos acontecimentos que nos dão a oportunidade de refletir sobre essa fase da vida das crianças mostrando as suas especificidades em relação às situações vividas. É um filme de esquetes que vão acontecendo de forma simultânea, sem formar uma única história, mas que ao mesmo tempo conseguem se relacionar entre si a partir do tema abordado que é a infância, um dos temas mais presentes na obra de Truffaut que também aborda em seus filmes o amor pelas mulheres, pelos livros e pela música, porém suas obras possuem uma particularidade - nem sempre tem o final feliz esperado pelo telespectador. É um filme formado por histórias originais, que contam com a colaboração de Suzanne Schiffman. O título original é “L’Argent de Poche” que traduzido significa dinheiro de bolso, trocadinho, moedas pequenas. É possível perceber certa ironia na escolha do título do filme, o que, aliás, é uma das características do cineasta no decorrer de sua carreira.

O filme não utiliza muitos recursos da tecnologia digital (dada às condições do cinema novo francês - Nouvelle Vague) e propõe uma nova estética de cinema que vai na contramão do processo de embrutecimento da sensibilidade que produz violência como algo naturalizado. “Na idade da inocência” apresenta um enredo com e sobre crianças durante o verão de 1976 que é mostrado a partir de esquetes que vão acontecendo de forma simultânea, sem formar única história, mas que ao mesmo tempo conseguem se relacionar entre si a partir do tema abordado que é a infância - um dos temas mais presentes na obra de Truffaut. O filme, cuja trilha musical é de Maurice Jaubert, apresenta muitas cenas mostrando crianças de idades diversas na pequena cidade francesa de Thiers e suas relações com os adultos e entre si. As roupas usadas pelos personagens são simples, do dia-a-dia e sugerem que o filme tenha sido gravado num único dia. Em relação ao enquadramento, elas estão sempre em evidência, a câmera as focaliza de uma forma aproximada e geralmente na horizontal, de um ângulo que está no nível dos olhos da pessoa que está sendo filmada, assim é possível percebê-las de uma maneira diferente e especial. No final de cada esquete, quase sempre são mostradas cenas em close-up que duram alguns segundos. A câmera mostra crianças brincando rodeadas de outras crianças, apresentando inúmeras possibilidades de brincarem com seus pares e mesmo quando são mostradas nas cenas de forma coletiva, é possível perceber que a subjetividade não é anulada e nem sacrificada em prol do todo. Elas têm semelhanças, mas são apresentadas como indivíduos com necessidades específicas. Mesmo apresentando várias histórias paralelas, os movimentos de câmera nas cenas permitem a compreensão e a reflexão do que está sendo mostrado. A câmera mostra a criança vendo o mundo de uma perspectiva que os adultos já não conseguem mais enxergar, mostra formas diferentes de vivenciar situações que eles pensam só poder ser vividas na infância e com isso leva o espectador a parar para refletir não somente neste período tão importante da vida, mas em tudo que ficou para trás, esquecido e que não se faz mais presente na vida adulta em que rapidamente esquecemos de quem fomos.

Desta forma, na narrativa de Truffaut vê-se predominar uma tendência a retratar a infância não mostrando apenas a criança exposta às duras realidades da vida como a pobreza, a desestrutura familiar, a ausência paterna ou materna, os maus tratos e outras, mas que, mesmo exposta à estas realidades, não é apática,ou seja, reage a elas pois está inserida na cultura. A representação da infância exposta por Truffaut mostra, que a infância nem sempre é vivenciada da forma como deveria, pois muitas crianças não têm acesso ao mínimo necessário para lhes garantir os direitos básicos e estão inseridas em situações difíceis desde muito cedo, mas mesmo não apresentando uma infância fantasiosa com falsas representações o diretor é capaz de dar visibilidade e mostrar com muita propriedade situações em que elas têm oportunidade de desenvolver a sensibilidade, a criatividade, a ludicidade e a liberdade de expressão.

Truffaut coloca a câmera para capturar a criança de corpo inteiro, brincando, reconhecendo e produzindo semelhanças. O filme não sugere uma adaptação da criança ao mundo adulto, pelo contrário apresenta inúmeras situações em que a criança é vista como criança e não como um adulto em miniatura. O roteiro elaborado por Truffaut dialoga com uma perspectiva educacional crítica e, ao mesmo tempo estética, pois mostra a partir de cenas do cotidiano que as experiências estéticas são possíveis às crianças e a infância é um tempo propício para isso. Mesmo se apresentando com uma reunião de pequenos episódios, a dinâmica da exposição das cenas oportuniza tempo para que o espectador reflita sobre elas e esqueçam que são imagens produzidas, mas tendem a reconhecer as diversas situações mostradas nas cenas relacionando-as com suas vidas. Atualmente, as formas de brincar e de se expressar estão muito direcionadas e condicionadas, a imaginação está sendo tolhida porque as situações estão sendo postas de uma forma em que ela mais observa do que participa.

Ele mostra claramente a liberdade de sentidos que é dada aos seus personagens infantis e as formas como as crianças reagem esteticamente às inúmeras situações do cotidiano. Ele reitera o esforço de não apresentar a infância como uma unidade, com reações coerentes, previsíveis e sistemáticas, mas concreta, corporal, não repetitiva. A experiência não é apresentada de forma pronta, os sentidos, as emoções e os desejos não são retratados de forma administrada. O autor consegue transitar pela linha tênue entre o real e o fantasioso apresentando a infância com seus problemas e limitações em relação aos adultos, mas em contrapartida não é indiferente e não deixa de apresentar inúmeras possibilidades de superar estas condições de uma maneira muito peculiar ratificando a possibilidade da infância e da educação serem contrárias à barbárie. O cineasta tem uma característica particular e especial de incomodar o espectador e nesta obra não é diferente: transmite uma mensagem, a partir das imagens, que perturba o modo como nos relacionamos com o mundo, criticando o modo mercantil de tratar o universo da infância, em que as coisas são apresentadas dentro de categorias fixas e rígidas. As imagens da infância expostas por Truffaut ganham ainda mais força ao promover uma oportunidade favorável para a percepção sobre a necessidade de vivenciarmos o mundo mimeticamente.


O tempo que é dispensado ao assistir este filme permite a oportunidade do adulto repensar a visão de criança que possui, de buscar resgatar o que foi perdido na vida adulta e nas razões pelas quais deixou de utilizar as características estéticas no seu dia a dia. O filme oferece também a oportunidade dos professores pensarem sobre a forma como Truffaut retrata a infância e como isto acontece em outros filmes infantis que são consagrados e vastamente divulgados em virtude do sucesso de bilheteria que obtêm.

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